"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

quinta-feira, 19 de março de 2009

Coesão referencial

Certa vez eu jogava uma partida de Sinuca e só havia a bola sete na mesa. De modo que mastiguei-a lentamente saboreando-lhe os bocados com prazer. Refiro-me à refeição que havia pedido ao garçon. Dei-lhe duas tacadas na cara. Estou me referindo à bola. Em seguida saí montado nela e a égua, de que estou falando agora, chegou calmamente à fazenda de minha mãe. Fui encontrá-la morta na mesa, meu irmão comia-lhe uma perna com prazer e ofereceu-me um pedaço: "Obrigado", disse eu "já comi galinha no almoço".
Logo em seguida chegou minha mulher e deu-me na cara. Um beijo, digo. Dei-lhe um abraço. Fazia calor. Daí a pouco minha camisa estava inteiramente molhada. Refiro-me à que estava na corda secando, quando começou a chover. Minha sogra apareceu para apanhar a camisa. Não tive remédio senão esmagá-la com o pé. Estou falando da barata que ia trepando na cadeira.
Malaquias, meu primo, vivia com uma velha de oitenta anos. A velha era sua avó, esclareço. Malaquias tinha dezoito filhos, mas nunca se casou. Isto é, nunca se casou com uma mulher que durasse mais de um ano. Agora, sentado a sua frente, Malaquias fura o coração com uma faca. Depois corta as Pernas e o sangue vermelho do porco enche a bacia.
Nos bons tempos passeávamos juntos. Eu tinha um carro. Malaquias tinha uma namorada. Um dia rolou a ribanceira. Me refiro a Malaquias. Entrou pela pretoria adentro arrebentando a porta e parou resfolegante junto do juiz pálido de susto. Me refiro ao carro. E a Malaquias.

(In Millor Fernandes, Trinta
anos de mim mesmo. São Paulo, Abril
Cultural, 1973.)

Um comentário:

Edson Nova disse...

Incrível! Seu texto foi simples mas muito divertido, ri horrores!
Me curvei para frente e dei... estou me referindo a gargalhada!